Álvaro Cunhal<br>no Museu do Aljube

Manuel Augusto Araújo

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O Museu do Al­jube con­ti­nuou um ciclo de en­con­tros sob o tema In­te­lec­tuais e Ar­tistas da Re­sis­tência, cujo ob­jec­tivo é a «evo­cação da vida e obra de ar­tistas, de ho­mens de le­tras e de ci­en­tistas que se opu­seram pela vida e a obra, à di­ta­dura fas­cista».

O pri­meiro, a 29 de Abril, foi Ma­nuel Tiago/ Álvaro Cu­nhal. Se­guir-se-ão José Afonso, 27 de Maio, Bento Jesus Ca­raça, 17 de Junho e Maria Lamas, 1 de Julho.

A re­fe­rência a Ma­nuel Tiago/Á​lvaro Cu­nhal per­cebe-se pela maior no­to­ri­e­dade e di­vul­gação da obra li­te­rária de Álvaro Cu­nhal, ainda que seja algo re­du­tora no con­texto do seu tra­balho in­te­lec­tual que de­correu em pa­ra­lelo com a sua in­tensa ac­ti­vi­dade po­lí­tica, prá­tica e teó­rica, onde se afirma como um dos mai­ores e mais in­flu­entes pen­sa­dores do mar­xismo-le­ni­nismo. Uma cons­ta­tação que é uma evi­dência ao ler as suas Obras Es­co­lhidas, onde se re­velam textos cuja au­toria a clan­des­ti­ni­dade obrigou ao ano­ni­mato ou ao re­curso a pseu­dó­nimo e se sis­te­ma­tizam os pro­du­zidos de­pois do 25 de Abril.

No en­contro no Museu do Al­jube, a tó­nica in­cidiu no tra­balho de Álvaro Cu­nhal na área das artes vi­suais e da li­te­ra­tura que foi co­nhe­cido em cir­cuns­tân­cias es­pe­ciais. O es­critor Ma­nuel Tiago de­so­culta-se quando se sabe que um aca­dé­mico es­pe­cu­lava sobre quem seria a pessoa que usava esse crip­tó­nimo e o iria atri­buir a outro que não Álvaro Cu­nhal, o que o com­peliu a rei­vin­dicar a au­toria dos ro­mances e no­velas, só co­nhe­cido por um grupo res­tri­tís­simo de ca­ma­radas. Os de­se­nhos da prisão, or­ga­ni­zados em duas sé­ries, foram edi­tados com o ob­jec­tivo de­cla­rado de an­ga­riar fundos para o Par­tido. Ne­nhum es­tava as­si­nado, ne­nhum foi as­si­nado. Só mais tarde, no con­texto das ce­le­bra­ções do seu cen­te­nário, é que na XVIII Bi­enal das Artes Plás­ticas da Festa do Avante! se co­nhe­ceram pin­turas e de­se­nhos de al­guém que, con­fron­tado com o seu ta­lento, dizia que gos­taria de ter tido tempo para «aprender a pintar».

No de­bate, um dos in­ter­ve­ni­entes le­vantou a questão de haver co­mu­nistas es­cri­tores, como Álvaro Cu­nhal ou So­eiro Pe­reira Gomes e es­cri­tores co­mu­nistas como José Sa­ra­mago ou Alves Redol. Um ponto de vista in­te­res­sante para a aná­lise crí­tica de obras em que a ac­ti­vi­dade po­lí­tica é cen­tral na ac­ti­vi­dade in­te­lec­tual. De facto, tanto a obra li­te­rária como a obra pic­tó­rica de Álvaro Cu­nhal têm sempre como re­fe­rência re­a­li­dades bem co­nhe­cidas pelo autor no seu per­curso po­lí­tico. Esse co­nhe­ci­mento é bem pre­sente mesmo na tra­dução do Rei Lear de Sha­kes­peare, nas notas que ex­plicam op­ções lin­guís­ticas e en­qua­dra­mentos his­tó­ricos e so­ciais.

A di­fe­rença maior entre as duas áreas cri­a­tivas onde Álvaro Cu­nhal im­primiu as suas ap­ti­dões está nos am­bi­entes onde de­correm as ac­ções. Nos de­se­nhos, os lu­gares não são pas­sí­veis de re­co­nhe­ci­mento, são abs­tractos. São raros os ele­mentos ar­qui­tec­tó­nicos, quando existem não dão in­di­ca­ções sobre os lu­gares. O es­paço tem a função de con­ferir pro­fun­di­dade e li­ber­dade ao mo­vi­mento das fi­guras, às si­tu­a­ções. Na li­te­ra­tura os es­paços são des­critos nos ele­mentos vi­sí­veis que até os tornam iden­ti­fi­cá­veis o que se con­trapõe aos es­paços abertos dos de­se­nhos em opo­sição ao es­paço a que o autor es­tava con­fi­nado.

Nos ro­mances é sur­pre­en­dente, para quem não co­nhecia Álvaro Cu­nhal, a mul­ti­fa­ce­tada ri­queza hu­mana das per­so­na­gens. Ne­nhuma é li­near nas suas gran­dezas e nas suas fra­quezas. Mesmo os po­li­ti­ca­mente mais in­di­fe­rentes, de du­vi­dosos prin­cí­pios éticos, são ca­pazes de um sú­bito gesto de des­pren­di­mento como o pas­sador de Cinco Dias, Cinco Noites.

Nas in­ter­ven­ções in­tro­du­tó­rias e no de­bate su­bli­nhou-se o pro­fundo hu­ma­nismo e a enorme di­mensão in­te­lec­tual e po­lí­tica de Álvaro Cu­nhal que o tornam uma das per­so­na­li­dades mais mar­cantes e mais fas­ci­nantes da His­tória de Por­tugal. O ar­tista e es­critor que Álvaro Cu­nhal não foi o que po­deria ter sido porque, como es­creveu no pre­fácio de A Arte, o Ar­tista e a So­ci­e­dade, «o ab­sor­vente em­pe­nha­mento noutra di­recção de ac­ti­vi­dade im­pediu a re­a­li­zação do pro­jecto. Por ra­zões ób­vias, o que não foi pos­sível já não o será». O pro­jecto era rever e ac­tu­a­lizar esse en­saio. Aplica-se a toda a obra ar­tís­tica que nos legou in­de­pen­den­te­mente da qua­li­dade al­can­çada.

 



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